“Há,  pois,  uma outra língua,  que  não  remete  mais  a linguagem
a objetos enumeráveis e combináveis, nem a vozes emissoras,
 mas  a  limites  imanentes  que  não  cessam  de  se deslocar,  hiatos,
 buracos, escuros  ou  fendas,  dos  quais  não  se  daria conta,  sendo
atribuídos  ao  simples  cansaço,  se  eles  não aumentassem  de  uma  só  vez,
de  maneira  a  acolher  alguma coisa  que  vem  de  fora  ou
 de  algum  outro  lugar: Hiatos  para quando as palavras se forem.”

Gilles Deleuze

 

história

Ao rever a  breve, porém potente, trajetória do grupo, talvez possamos apontar os caminhos que guiam esses jovens artistas por um caminho coerente que teve início com a diferença e o autismo, passou pelo estudo da memória e chega agora a uma espaço sobre a igualdade, o duplo e a geminilidade (tema de seu próximo espetáculo).

O próprio nome escolhido pelo grupo – Hiato – já nos dá pistas de suas escolhas artísticas e justifica a continuidade  à investigação  de novas dramaturgias e formas cênicas que suscitem questionamentos sobre a “diferença”,  as formas de percepção da realidade, as lacunas entre a experiência e a linguagem e a multiplicidade de perspectivas que constituem nossa consciência, isto é, nossa invenção de um eu singular e coeso.

Os espetáculos criados pelo grupo nascem de questionamentos muito pessoais: “qual a distância entre o que eu digo e o que você entende/quer entender, do que eu disse? Qual o tamanho da lacuna que existe entre a minha experiência e a linguagem? O que eu consigo expressar da minha experiência?”  E, pra responder a essas perguntas, temos que considerar que existem outras formas de perceber o mundo além da norma. E isso nos faz voltar ainda mais e perguntar: como percepções de mundo, comportamentos, formas de pensamento podem ser consideradas adequadas ou inadequadas, se elas são únicas? A Companhia Hiato acredita que transformar essas perguntas em processo criativo é uma forma de, mais do que responder, compartilhar tais incertezas.

Em  “Cachorro Morto” (2007), o grupo partiu de uma experiência pessoal do diretor e encontrou no autismo e na Síndrome de Asperger um ponto de partida para questionar diferentes formas de apreensão do mundo. Ao mergulhar no raciocínio matemático, levou aos palcos – com reconhecimento da crítica e do público – uma história “envolvente, criativa, divertida e sem pieguices, tratando com amplitude e inteligência um tema delicado.” (Veja São Paulo).

O crítico teatral (Folha de São Paulo) Luiz Fernando Ramos diz, sobre o primeiro espetáculo criado por esses jovens artistas: “Leonardo Moreira estava interessado em trazer o universo do autismo para a cena e o conseguiu plenamente. De algum modo, mesmo na colagem de referências e contando com a participação ativa dos atores, ele revela um talento de dramaturgo que ainda promete muito nessa combinação com as funções de encenador. Os atores, por sua vez, alcançaram um padrão homogêneo sem o que não seria possível desenvolver-se a dinâmica de constante variação da voz narradora. (…) Não é todo dia que se apresenta um mundo tão mágico de correlações entre os números, as cores, a moral e o tempo.”

Este espetáculo estreou no início de 2008,  no SESC Avenida Paulista. Com ingressos esgotados e excelentes críticas (sendo recomendado pela Veja São Paulo e pela Folha de São Paulo), teve sua temporada prorrogada.   Na sequência, Leonardo Moreira é apontado com um dos “novos autores de destaque da cena paulista” (Ilustrada – Folha de São Paulo); Cachorro Morto é eleita, pela Veja São Paulo, uma das dez melhores peças em cartaz  na cidade. As críticas do Estado de São Paulo afirmam que Cachorro Morto  “usa nova linguagem para traduzir outro modo de estar no mundo” e recomendam o espetáculo como “instingante do início ao fim.”  Leonardo Moreira é apontado como um dos “diretores para se ficar de olho” na coluna de avaliação daquele jornal e o elenco recebe a avaliação “nota dez” pela mesma coluna. Paralelamente a esse reconhecimento, a peça inicia uma sequência de apresentações pelos SESC do interior de São Paulo e  recebe duas pré- indicações ao Prêmio FEMSA de Teatro 2009 (incluindo Melhor Espetáculo Jovem).

De forma coerente, o grupo então formaliza um projeto de investigação artística que sempre parte do estudo e compreensão de outras formas de pensamento. O segundo passo do longo trajeto proposto por esses jovens artistas foi a produção de “Escuro”, em que a deficiência serviu de metáfora para a insuficiência do diálogo. O espetáculo não apontava o “diferente”, nem mesmo procurava a sensibilização social do público diante da diferença. Ao contrário, a peça buscava, ao perguntar como se organizaram no homem as possibilidades de conhecimento do mundo, ou de que modos o cérebro processa conhecimento e percepção do real, contar uma história sobre pessoas comuns, sua inadequação, sua linguagem, os hiatos entre suas relações,  os olhares que as cercam.

O espetáculo estreou em novembro de 2009 no SESC Pompeia, após quinze meses de ensaios es estudos. Com o texto de “Escuro”, Leonardo Moreira vence o “Prêmio Estímulo a Novos Textos da Secretaria de Cultura de São Paulo 2009”. Além disso, o espetáculo é classificado entre “As Melhores Peças em Cartaz” do Guia da Folha, entre “As peças recomendadas” do Guia do Estado e “Dez Melhores Peças em Cartaz”, Veja São Paulo.

O crítico da Folha de São Paulo (dezembro/09)  aponta que “Leonardo Moreira é uma revelação que já se tinha anunciado em seu espetáculo anterior, “Cachorro Morto”. (…) Escuro marca a jovem maturidade de um talentoso narrador. Um que une os engenhos de ator e do dramatrugo às clarividências do encenador. Leonardo Moreira promete muito, e, junto com o coletivo que o acompanhou, tem o mérito de ter criado uma obra imperdível.”   Também o  jornalista  Nelson de Sá (Blog Cacilda – Folha de São Paulo/ dezembro de 2009) afirma que “O jovem autor, Leonardo Moreira, sabe escrever para teatro. Sua trama engenhosa, intrincada, remete ao cinema independente americano; as situações – que cria e recria sem parar – instigam e divertem. A exposição dos desajustes, dos estranhamentos, dos mudos e dos ingênuos, dos gagos e dos fanhos; tudo indica uma sensibilidade genuína, um olhar de artista sobre a própria existência. E sua direção aponta para o risco e resulta em simplicidade e inventividade, com grandes achados.”

Ainda nesse ano, Leonardo Moreira aparece como a Revelação Teatral no site Colherada Cultural e seus dois espetáculos estão presentes nas listas de melhores peças de 2009 nos sites: Guia da Folha Online – UOL; Lucas Mayor, Blog Cacilda – Folha Online e na Gazeta da Manhã.  O espetáculo é  convidado a participar da Mostra Oficial do Festival de Curitiba 2010. Finalmente, o espetáculo é líder em indicações aos principais prêmios de 2010: 01 Indicação Prêmio CPT 2009 (Melhor Autor Teatral); 05 Indicações ao Prêmio Shell 2010 (Melhor Autor, Melhor Diretor, Melhor Cenografia, Melhor Atriz e Melhor Figurino / Premiado: Autor, Figurino, Cenário); 05 Indicações ao Prêmio CPT 2010 (Melhor Espetáculo, Melhor Autor, Melhor Diretor, Melhor Projeto Visual, Companhia Revelação/ Premiado: Melhor Espetáculo).

A terceira montagem da Companhia Hiato foi  “O JARDIM”. Tratando das memórias perdidas (o estudo da doença de Alzheimer e as perdas de memória relacionadas ao envelhecimento); as memórias perenes (o não-esquecimento); e as memórias inventadas (os cadernos de um esquizofrênico como material poético para a criação), o espetáculo estreou em maio de 2011 (com o apoio do Fomento ao Teatro, após 13 meses de pesquisa). A peça lançava um olhar jovem sobre a fragilidade das memórias que inventamos, das histórias que não nos abandonam, do que perdemos no caminho, daquilo que colecionamos em nossas caixas mais  secretas. Após uma temporada em São Paulo e uma curta passagem pelo Rio de Janeiro e por alguns festivais (Recife e Brasília), o espetáculo apareceu em todas as listas de Melhores Espetáculos em Cartaz da imprensa paulista, foi descrito como um espetáculo “memorável”(Bravo!) e Leonardo Moreira foi descrito como “o nome mais promissor da atualidade” (Veja São Paulo). O espetáculo recebeu o Prêmio Governador do Estado, Leonardo Moreira recebeu o Prêmio APCA pela direção e o trabalho ainda coleciona outras 18 indicações aos mais respeitados prêmios do país.

Em sua última incursão criativa, o espetáculo “Ficção”, a Cia. verticaliza as pesquisas apontadas no último espetáculo da Cia, “O Jardim”,  sobre o teatro documental, “mocumentários” (documentários de mocape, isto é, ficções que assumem o formato documental) e dramaturgias confessionais.

Associadas a um pensamento dramatúrgico, em que cada ator é também autor de seu solo, “Ficção” é um obra teatral em seis partes: seis experimentos de ocupação (ou espetáculos curtos) ocupando o mesmo espaço cênico em períodos diferentes, criando diversos contextos ficcionais para um mesmo espaço. Os atores (Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Paula Picarelli e Thiago Amaral) realizam uma performance/monólogo de curta duração a partir de seus relatos biográficos sobre “duplicidade”- não apenas um autorretrato, mas um  “duplo retrato”.  O título de cada um desses solos é o nome real do ator (não o seu nome ficcional). A partir de relatos biográficos de cada um dos atores, criam-se instalações dramatúrgicas e cênicas acerca de questionamentos sobre a necessidade de ficção e nossa impossibilidade de abandoná-la, dissecando em cena um processo cênico e expondo os limites (ou intersecções) entre vida e criação artística. Centrados nas relações dos atores com seus familiares (com a presença de pais e irmãos reais),  são apresentados depoimentos ficcionais em que as ideias de “intimidade” e “documento” são indissociáveis

Nem só a temática e a linguagem escolhidas em seus três espetáculos atestam a permanência e relevância desse recente grupo. É importante destacar também uma unidade na forma com que tais peças foram criadas: a criação é sempre colaborativa. O ponto de partida de cada uma delas é desenvolvido através de ensaios e estudos que envolvem  improvisação, argumentos, escrita, reescrita, desespero e esperança. O resultado em cena representa o trabalho árduo de muitas pessoas ao longo destes dois anos.  Um trabalho sempre em processo – a cada apresentação, as peças são revistas e influenciadas por diferentes plateias. A cada nova mudança, seja a substituição de algum ator, ou novos técnicos ou  novos espaços, descobertas emergem, novas direções são apontadas.  Nesse caminho, as peças acabam por se tornar pontos de encontro e partida, destinos– poderíamos até dizer que se tornam “lugares” onde são compartilhadas histórias e inexperiências.

Em um grupo tão recente mas com tamanha consistência, é cedo demais para apontar certezas ou teorias sobre o novo trabalho. Talvez a única certeza seja a de que aquilo que os move a continuarem trabalhando juntos, fazendo as mesmas perguntas juntos é o mergulho sem receios ao novo e inesperado,  emprestando seus questionamentos à dramaturgia, seus nomes aos personagens, suas experiências pessoais à criação, suas vidas à ficção.

 

Conheça o site da Cia. Hiato
http://ciahiato.com.br

 

Autores e Colaboradores

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Leonardo Moreira
Criador e Diretor

Dramaturgo e diretor da Companhia Hiato, de São Paulo.

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Maria Amélia
Atriz

É cofundadora e atriz integrante da Cia Hiato, atuando nos espetáculos “Cachorro Morto”, “Escuro”, “O Jardim e "Ficção".