Inicio este texto, ou, melhor dizendo, este diálogo, pedindo licença aos meus ancestrais e às forças da natureza. Parafraseando Davi Kopenawa (2015), já que aprendemos a fala e a escrita do não indígena, aqui estou, desenhando minhas palavras em peles de imagens, pois também desejo que minhas palavras se dividam e se espalhem bem longe, para serem ouvidas.
É a partir dessa perspectiva que ESTA ESCRITA SE CONFIGURA COMO EXTENSÃO DE MIM, E QUE NESSE MEU EU – CORPO/ESPÍRITO ela possa expressar de onde venho, o que carrego e principalmente que possa falar dos processos de partilhas, dos bons encontros com os não indígenas.
Sou Ziel Karapotó, indígena da etnia Karapotó, oriundo da comunidade Terra Nova, localizada no município de São Sebastião, em Alagoas. Passei minha infância na aldeia, mas desde 2015 moro em Recife, em Pernambuco, já que, após concluir o ensino médio, decidi cursar Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde então vivo em trânsito, nesse intercâmbio entre minha comunidade, a cidade de Recife e outras paisagens/ territórios/ mundos.
A possibilidade de transitar é algo recente para nós indígenas, nesta sociedade construída a partir do epistemicídio, genocídio e etnocídio dos corpos/ espíritos originários de Pindorama, hoje conhecido como Brasil. NÃO TRANSITAR É VIOLÊNCIA, é nos colocar sob uma lógica colonial de apagamento, precariedade, antagonismo, não acesso aos nossos direitos.
Agradeço às forças da natureza e aos meus ancestrais que me deram coragem e força para percorrer os caminhos abertos, que muitas vezes se configuram como campos minados. São essas andanças que estão colaborando para a ampliação da minha existência e da minha percepção sobre a manutenção e atualização de armadilhas construídas para nossa captura e aprisionamento. SÃO ESSAS ANDANÇAS QUE ME FAZEM DOMINAR OS CÓDIGOS E ME PERMITEM TAMBÉM CONSTUIR ARMADILHAS, parafraseando Jaider Esbell (2019).
O TRÂNSITO INDÍGENA É AÇÃO ANTICOLONIAL, expande os mundos, abre fissuras, aciona tensões e promove nossa autoconsciência enquanto sujeitos coletivos.
Estar nessa espécie de intercâmbio entre a minha aldeia e outros mundos –conhecendo outros parentes, ampliando o meu olhar sobre a diversidade de cosmologias e cosmovisões que há na sociedade brasileira, fazendo universidade, conhecendo pessoas não indígenas que lutam ao nosso lado – vem me distanciando do “ser índio” ou ser indígena inventado pela colonialidade, romantizado, puro, exótico, selvagem, que vive apenas na mata, incapaz de se atualizar e principalmente de manter sua tradição e cultura na contemporaneidade, no mundo globalizado, tecnológico. Esse ser indígena plantado no imaginário da sociedade brasileira.
É PRECISO TRANSITAR PARA FAZERMOS AS FRONTEIRAS ESTABELECIDAS RUIR, MAS É PRECISO MUITO CUIDADO. HÁ SEMPRE MUITA PROBABILIDADE DE A CADA PASSO UMA EXPLOSÃO ACONTECER E SERMOS DILACERADOS, cairmos no embranquecimento e perdermos a consciência de quem somos, assim como os 63% do povo brasileiro considerado branco que, segundo apontam pesquisas de 2005 da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na área da genética, seriam de origem Tupy.
É necessário entender que o processo de retomada e autoafimação identitária é contínuo, para que a andança nos fortaleça e para não cairmos na armadilha de nos tornarmos estrangeiros no nosso próprio território.
É evidente que a pesquisa da UFMG não transbordou os muros da academia pois esse tipo de informação não é importante para o Estado brasileiro; segundo o IBGE, a população indígena no Brasil é de apenas 0,47% dapopulaçãototal do país. É IMPORTANTE TRANSITAR PARA AMPLIAR OS NÚMEROS, É PRECISO TRANSITAR PARA NOS (RE)ENCONTRARMOS.
Acredito fortemente na potência dos (re)encontros. É neles que a partilha acontece, tanto entre nós indígenas quanto entre indígenas e não indígenas. Venho acreditando nos bons (re)encontros, mesmos que, em alguns momentos, eles sejam apenas iniciados e se resumam ao “politicamente correto”.
Tenho sentido que esse movimento, e agora me refiro aos não indígenas, está se tornando cada vez mais frequente, talvez como reação aos impactos que são consequência do distanciamento deles em relação à nossa mãe-terra, por enxergarem a natureza apenas como fonte extrativista em prol do capital, por esquecerem suas ancestralidades. “Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”. (Krenak, 2019)
Precisamos urgentemente desenterrar raízes, construir outras paisagens, parar de insistir nesse modelo de humanidade que está em apodrecimento. Assim como sinaliza Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo. É necessário construir intercâmbios, estabelecer relações de alteridade nas quais as diferenças não sejam um problema. Encarar a natureza como sujeito de direito e principalmente como organismo do qual fazemos parte.
Atualmente, nós indígenas somos colocados como os guardiões das florestas, dos rios, da terra etc., por nossa forma de viver em harmonia com a natureza. Contudo, isso me preocupa, pois me parece que querem colocar sobre nós mais uma responsabilidade, a de solucionarmos um problema de cuja elaboração não participamos. Salvaguardar a natureza é papel de todos. O que podemos fazer é continuar transitando, compartilhando e ecoando o nosso bem-viver. ESPERO QUE SEJAMOS ESCUTADOS para não sucumbirmos. Continuarei a transitar mesmo que em piracema, contra a correnteza, mas sempre em cardume.
Estava na aldeia mandaram me chamar.
Estava na ladeia mandaram me chamar.
Caboquinho da aldeia, rê-i-á.
Caboquinho da aldeia, rê-i-á.
*foto: Ligia Jardim
Ao intitular este trabalho piracema, vocábulo da língua tupi que significa “subida do peixe”, em que os peixes nadam contra a corrente para a cabeceira dos rios para se reproduzir (SANTOS, 2019), crio metáforas a partir da minha trajetória na academia e, consequentemente, nos espaços por onde passei (museus, galerias e escolas).
Vejo que relacionar minha trajetória com piracema, fenômeno que garante a reprodução, manutenção e sobrevivência de muitas espécies de peixes, é interessante, pois me faz refletir sobre os obstáculos encontrados nos lugares que ora ocupei, pelos quais ora fui ocupado, espaços esses preenchidos de violências, ausências, apagamentos e dificuldade de compreensão da diversidade de culturas, etnias e identidades indígenas.
No entanto, é importante ressaltar a potência desse nadar-transitar. Estar na academia foi de suma importância para ampliar meu olhar e criticidade sobre tudo que me cerca, afeta e atravessa, para construir laços e compartilhar saberes, me fez de alguma forma “respirar” melhor, assim como os peixes quando se encontram em piracema.
Compreender os alicerces sobre os quais estão estabelecidos os espaços legitimadores e difusores de conhecimento, e em contrapartida fazer com que nossas vozes e pensamentos ecoem nesses espaços, é de alguma forma provocar fissuras, apodrecimento das raízes coloniais. É proporcionar a quebra dos discursos hegemônicos, construir e difundir outras narrativas sobre nós indígenas e nos tornar protagonistas e autores de nossas próprias histórias.
Indaguei e me questionei sobre qual seria o formato dessa nossa conversa, porque almejo que os pensares aqui externados atravessem os muros institucionais, que sejam acessíveis aos “iguais a mim”. Que possam ser ecoados nas comunidades indígenas, assentamentos quilombolas, ciganos e nos demais povos e grupos tradicionais que existem e resistem na sociedade brasileira.